A necessidade do palco

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Não há dúvida que a infância nos deixa marcas, muitas vezes carregadas de boas lembranças. Não quero desdenhar de outras épocas, mas arrisco dizer que aqueles que, como eu, foram criança na década de 1980, tiveram o privilégio de experimentar grandes momentos. Sobrevivemos aos “perigos” das brincadeiras de rua e aos calos nas mãos ocasionados por tardes infinitas no controle do Atari. Além disso, carregamos uma enxurrada de referências da cultura pop, disseminada pelo hábito de assistir televisão.

Diferente de hoje, onde o politicamente correto determina o que é sagrado e o que é profano, onde a programação é pautada pela obsessão por saúde e bem-estar, nossas emissoras tinham outros parâmetros naquela época. Basta dar uma olhadela no cardápio do Canal Viva e perceber que nos divertíamos sem culpa com o que chamam hoje de “exageros”.

Que são bem retratados no ótimo “Bingo – O rei das manhãs” de Daniel Rezende. Baseado na biografia de um dos atores que deu vida ao palhaço Bozo (Arlindo Barroso), o filme nos transporta para aquele período, e testemunhamos as glórias e os dissabores de um personagem riquíssimo. Em excelente atuação, Vladimir Brichta dá vida a um artista transgressor, que atinge o auge criativo sem poder ser reconhecido por isso. Por motivos contratuais não pode revelar sua identidade e assim, vive como um anônimo entre seu imenso público. Claro que o filme mostra outras questões, mas considero esta, a mais relevante: a sua insuportável existência longe dos holofotes do palco.

Como toda “criança feliz” dos anos 1980, assistia ao programa do Bozo em larga escala. Nas férias em jornada dupla, pois chegou a passar de manhã e de tarde no SBT (TVS na época) tamanho era o sucesso. Não tinha discernimento para suspeitar do comportamento daquele palhaço aloprado, mas hoje posso afirmar que muitas vezes trabalhei a frustração quando ele fazia propaganda dos inúmeros produtos licenciados que eu jamais tive. Sobrevivi também à inveja que sentia quando um “amiguinho” ligava no programa e ganhava uma bicicleta apostando no cavalo malhado, na brincadeira da corrida dos cavalos.

Apesar do meu olhar carregado de memória afetiva, não acho que determinado período seja melhor que outro. Mas lamento que muitos da minha geração não proporcionem aos seus filhos experiências como as que tiveram na infância. Cada vez mais, a meninada vive em redomas, sufocada por agendas que as impede de ser criança. Mas isso é uma outra história! Talvez tenha relação com a nossa obstinação pelo sucesso, algo que é atemporal. Assim como o palhaço Bingo, não sabemos lidar com o anonimato.

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