Vergonha
Infelizmente, os filmes que escolhi para comentar não estão em cartaz na nossa região. Mas para a sorte dos interessados em produções mais distantes dos holofotes de Hollywood, “Shame” e “Habemus Papam” podem ser encontrados na Internet; basta navegar um pouco acima do mar de banalidades.
“Shame” é o grande sucesso das rodas de discussões e colunas de opinião deste início de ano. Sua repercussão consolida a carreira de cineasta do britânico Steve McQueen, já consagrado como artista plástico. Antes havia feito “Hunger”, filme político com foco na greve de fome de um integrante do IRA (grupo nacionalista irlandês) dentro da prisão. Se traduzidos para o português, “Fome” e “Vergonha” poderiam sintetizar de forma direta e concisa a atmosfera criada por McQueen; ambos exploram a relação do homem com a solidão em seus espaços físicos e mentais; os dois têm em comum a atuação irretocável de Michael Fassbender, que foi ridiculamente ignorado pelo Oscar.
Talvez o motivo do furor opinativo por “Shame” seja o assunto sexo, que ainda deixa ruborizada muita gente “descolada”. Brandon é um executivo irlandês que vive em Nova York, lugar onde consegue satisfazer com facilidade sua compulsão. Ele faz sexo com todas, a toda hora e nunca fica satisfeito. Se for o caso paga… Sua rotina perfeitamente funcional é atrapalhada pela inesperada visita de sua irmã Sissy, que, como foi muito bem definido num programa de TV, chega com “excesso de bagagem emocional”. Sem habilidade para relações íntimas e duradouras, afinal suas práticas não lhe exigiam cuidados além de uma boa transa, Brandon torna-se refém do caminho que escolhe, onde a rota de fuga converge sempre em sua obsessão.
Muito além da questão da amoralidade ou patologia, acho que “Shame” é um retrato duríssimo da solidão, do vazio que se pode experimentar em grandes centros urbanos, cada vez mais imponentes, majestosos e impessoais. O sexo é mero pano de fundo; a compulsão de Brandon podia ser pelo álcool, chocolate ou por sapatos feitos de camurça ecologicamente sustentável.
Considerar a busca pelo sexo uma doença, me parece mais um julgamento moral do que uma patologia (Tiger Woods foi a último alvo público). Há uma naturalidade tola no julgamento alheio, mas desconfio que aquele que enxerga muita doença no outro, na verdade é quem está precisando de medicação. A maioria das pessoas gosta de sexo e acha que poderia “praticar” um pouco mais, esse é o motivo da invejinha que sentimos das histórias daquele amigo cheio de aventuras. Um pervertido, claro!
Fraqueza
Um pouco menos comentado, mas não menos genial, é o italiano “Habemus Papam”, novo filme de Nanni Moretti. Neste, adentramos os labirintos do Vaticano e acompanhamos o conclave para a escolha do sucessor do Papa João Paulo II. Apesar de algumas cenas reais, trata-se de uma ficção.
Após toda a liturgia que envolve a escolha, o cardeal Melville (o fantástico ator francês Michel Piccoli) é eleito o novo papa. O problema é que o “homem” entra em crise e não se sente preparado para assumir o cargo. Para que o impasse não prejudique a “imagem” da Igreja, decide-se trazer um psicanalista (interpretado pelo próprio diretor) para tratar o religioso.
O tom leve e bem humorado que Moretti imprime, não ameniza sua ironia com a religião e a psicanálise. Não acho que ele as ridiculariza ou as menospreza como alguns escreveram, apenas provoca; dá uma cutucada, lembra que tanta cerimônia pode não dar conta das complexidades do homem. Ou então que respostas prontas, conceitos pré-estabelecidos (como o déficit de dedicação, obsessão da esposa do psicanalista) podem nos afastar ainda mais do que somos de fato.
Não por acaso, o cardeal Melville ameniza sua crise quando encontra um grupo de teatro que ensaia uma peça de Tchecov; natural, afinal sua vida havia se transformado num circo… Seu discurso final é, pelo contexto, uma das melhores cenas do cinema dos últimos anos. Um disparate, mas se é para fantasiar…
Generosidade
Dois ótimos discos estão disponíveis para download nas páginas oficiais de seus autores. Trata-se de “Ao vivo no Auditório Ibirapuera”, do grupo “5 a Seco” (http://www.5aseco.com.br/musicas.html) e de “O Deus Que Devasta Mas Também Cura”, do cantor e compositor Lucas Santtana (http://www.facebook.com/lucas.santtana.official).
O primeiro é de um grupo paulistano e conta com ótimas canções. Os arranjos vocais são ao melhor estilo Boca Livre e MPB4, reservadas proporções, afinal o disco do 5 a Seco é bem atual. Prova disso, são as participações de Maria Gadú, Lenine e Chico César. Minhas canções preferidas: “Feliz pra cachorro”, “Deixe estar” e “Gargalhadas”.
Já “O Deus Que Devasta…” é o quinto disco do baiano Lucas Santtana, conhecido pela experimentação; porém neste novo trabalho não reinventa a roda. Mas a habitual qualidade está presente, e em grande quantidade! Várias canções são crônicas de experiências recentes, inclusive um divórcio. Eis um ótimo exemplo de sublimação! Minhas canções preferidas: “O Deus Que Devasta Mas Também Cura”, “Músico” e “Para Onde Irá Esta Noite”.
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