A fila do pão

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Cresci ouvindo que brasileiro adora uma fila. Fui perguntar sobre o tema para as “IAs” e recebi todo tipo de explicação; desde fila indiana, passando pelos fundadores da marca italiana Fila, até chegar na raça de cachorro “fila brasileiro”. Não me mostraram nada sobre nossa relação de amor com essa forma evoluída de organização. Talvez porque precisem melhorar ou porque me equivoquei acreditando que gostar de filas tivesse relação com a sua origem, quando na verdade nosso apreço está no campo da participação.

Numa das inúmeras crises aéreas que experimentamos nas últimas décadas, lembro de um amigo me contar que estava na fila de um voo que foi cancelado. Todos estavam acomodados pacificamente, já com seus lanches e vouchers para a hospedagem quando subitamente apareceu uma repórter dessas com microfone de espuma. Assim que a câmera foi ligada o ambiente mudou. Algumas pessoas incorporaram o espírito revolucionário e foram manifestar sua revolta enquanto outras se afastaram do olho do furacão imediatamente. Mas o que achei mais curioso foi o desfecho; feito mariposas que se aquietam quando apagamos as luzes, assim que a câmera foi desligada, todos voltaram para os seus lugares na fila, de forma ordenada e tranquila.

A banda americana “Cake”, dona do hit “Never There”, costuma fazer uma performance inusitada para a música “Sick of You”. O vocalista John McCrea, que é o responsável pelo tom irônico do repertório, nessa música costuma dividir o público em dois corais (ao melhor estilo Wilson Simonal): os indignados e os escapistas. Provoca dizendo que os indignados são os nervosinhos do trânsito, os revoltados da internet, aqueles que acham que os outros são sempre a fonte de todos os seus males. Já os escapistas são aqueles que sempre fogem dos problemas, querem sempre voar para longe. A plateia sorri amarelo e se enquadra. Ele ainda continua a provocação: “Se alguém estiver no meio, pode descer do muro e escolher um lado”.

Não sei se a experiência de esperar numa fila é tão transformadora a ponto de mudar a nossa maneira de pensar e sentir. Sempre que o assunto é personalidade, não consigo escapar do modelo biopsicossocial, que é responsável pela “formatação” das nossas características. O “bio” é de biológico, daquilo que trazemos no DNA e que tem a ver com as nossas características hereditárias; o “psico” é de psicológico, que são as marcas que as vivências nos deixaram (frustrações, realizações e emoções experimentadas) e o social tem relação com a sociedade, com o nosso entorno. Se moramos numa cidade grande ou pequena, se convivemos com uma família numerosa ou não… A dinâmica nesses três eixos é determinante para a forma de como sentimos e agimos diante das situações.

Há também uma teoria nomeada de “modelo dos cinco grandes fatores”. Ela determina que nosso jeito de pensar e agir passa por um conjunto de cinco dimensões ou filtros que perduram pela nossa vida. São eles: Abertura, Conscienciosidade, Extroversão, Agradabilidade e Neuroticismo. Essa teoria foi desenvolvida para aprimorar a ideia de que temos um perfil de personalidade estático e definido, como dizem sobre os signos ou sobre a síndrome de Gabriela (eu nasci assim, eu cresci assim, vou morrer assim). A ideia é que tudo que vivemos e experimentamos pode alterar essas dimensões fazendo com que mudemos nossas percepções. Não vou elaborar muito a respeito. Pergunte para o seu “IA” de preferência ou como diria o ET Bilú: “busque conhecimento”!

Voltando para o senso comum, gosto da ideia sugerida pela banda Cake, sobre os indignados e os escapistas. Mas se fosse perguntado acrescentaria mais um tipo nessa fila: “o contente”. Dessa vez vou evocar outro ídolo, o Zeca Baleiro, que em sua música “Um filho e um cachorro”, do excepcional álbum “Pet Shop Mundo Cão”, definiu o contente como sendo “mais feliz do que os felizes”. Não se indigna mas também não foge, “engrossa o coro dos contentes e se contenta em ser banal”.

Sabe quando você está esperando há algum tempo na fila, para pegar o seu pãozinho de todo dia e, quando chega a sua vez é avisado que acabou? A próxima fornada é daqui a cinco minutos… Você evoca uma revolução diante de tamanho absurdo? Espera pacientemente e ainda acalma o seu vizinho de fila dizendo que será melhor, afinal vão levar o pão quentinho? Ou simplesmente desiste e vai embora? Quem é você na fila do pão?

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