Cadê meu celular?

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Cadê meu celular?

Era uma segunda-feira. Já atrasado, atravessei dois quarteirões de onde moro quando decidi ouvir um podcast. Coloquei a mão no bolso e percebi que estava vazio, abri a parte da frente da mochila, afundei a mão entre carteira, tickets de compras, fones, carregador de celular e… Nada! Não pensei duas vezes, dei a seta para esquerda e retomei o caminho de casa, com a diferença de que, para voltar, levaria o dobro do tempo que fiz até aquela parte do trajeto, ou seja, definitivamente não era a melhor opção… Mas entre o mega-atraso ou passar o dia sem conferir mensagens e olhar as redes sociais, escolhi “colocar a culpa no trânsito”!

Engraçado que no mesmo dia lembrei de uma situação semelhante, porém lá no longínquo ano de 2007. Naquele tempo só dei conta do esquecimento quando já estava no trabalho, passei o dia “de boa”, senti falta de me distrair com o jogo da cobrinha no meu bom e querido Nokia, mas nada que uma boa conversa não ajudasse a esquecer.

Mas o que será que mudou nesses dezoito anos?

O psicólogo e escritor Jonathan Haidt, autor de “A geração ansiosa”, afirma que lá pelos idos de 2010, quando a câmera frontal se popularizou nos smartphones e um pouco depois, quando as redes sociais se estabeleceram na palma de nossas mãos, a nossa relação com o aparelho mudou radicalmente. Segundo o autor, “quando o smartphone com mídias sociais entra na sua vida, ele vai ficar no centro dela para sempre”.

Além da relação que estabelecemos com o uso do celular, que inclui o sistema de recompensa do cérebro e a produção de dopamina, também é evidente a transformação da nossa forma de lidar com o tempo e principalmente com o tédio; definitivamente não há espaço para ele em nossas vidas. E assim, pautamos qualquer atividade ou evento de acordo com as redes sociais.

Quando foi a última vez que você fez um passeio ou uma atividade prazerosa sem fazer uma selfie ou postar numa rede social? Me perdoe pelo “plágio” Tiago Iorc, juro que foi com as melhores intenções!

Lembro de uma situação com uma pessoa que convivia (pessoalmente e nas redes). Naturalmente, sua vida era catalogada nos seus perfis e amplamente divulgada e curtida. Sempre que perguntávamos qual era a boa para o final de semana ela até respondia, mas sem muitos detalhes, sugestionando a espiada em suas “social medias”. Para nossa surpresa, tempos depois, alguém que era cúmplice dos seus passeios nos confessou que a realidade era bem distinta: apesar das fotos e postagens solares e cheias de frases de efeito, o tempo que passavam nos lugares inclua mal humor, indisposição e total impaciência da autora dos “posts”. Além de escravizar nossa atenção, esses pequenos aparelhos roubam nossa alma.

Para quem, como eu, foi criança ou adolescente nos anos 1990, lembra de um mundo analógico onde as interações não incluíam sua exibição numa plataforma; quem tinha grana filmava suas festas e distribuía as fitas. Mas era um casamento, um aniversário, não uma simples passada na mercearia da esquina. Para matar o tédio recorríamos à televisão, que ficava lá parada nos esperando com sua programação, assim como o telefone das casas, que era o único meio de conversas não presenciais e que só os ricos tinham. Só quem viveu a aventura de ligar a TV num domingo à tarde naquela década entende que não havia como ficar entediado. Mas isso é puro saudosismo, o uso da tecnologia é irreversível nas nossas vidas.

A coisa está tão complicada que o Jonathan Haidt já alertou que é melhor as crianças assistirem televisão que ficarem grudadas no tablet. Eu vivi para ver um especialista contrariar meu pai que me proibia de assistir o Chaves diante da primeira malcriação que eu manifestasse.

Um outro estudo também aponta para o chamado “efeito FOMO” (Fear of missing out ou medo de perder algo) como causador da nossa adicção pelo celular. O professor de economia da Universidade de Chicago, Leonardo Bursztyn e outros pesquisadores fizeram um experimento científico que analisou os motivos pelos quais as pessoas continuam nas redes sociais. De forma bem resumida, o resultado aponta que os participantes toparam ficar um mês sem acessar o Instagram e o Tik Tok, desde que a maioria de seus amigos diretos também ficassem, ou seja, o valor que atribuíram como usuários está diretamente relacionado ao sentimento de pertencimento.

Não precisa ser nenhum especialista para perceber o quanto o uso das redes sociais ocupa o nosso tempo além do necessário e o quanto isso afeta nossa saúde mental. Basta nos percebermos e avaliarmos o quanto estamos nos expondo, qual a nossa necessidade de ostentar, opinar e ser escutado. Será que é possível consumir tais conteúdos sem ser consumido? É possível resistir aos memes, banalidades que adoramos dar importância e aquele monte de receitas de pratos que curtimos mas nunca fazemos?

Nunca se falou tanto (ainda bem!) em relações tóxicas, mas parece que não pega bem falar mal dessa nossa necessidade de migalhas afetivas em forma de likes. Enquanto muitos se mobilizam com a discussão sobre o efeito da decisão de proibir os celulares dos Enzos e Valentinas nas escolas, deveríamos nos preocupar também com os nossos… Quem tira o celular dos adultos?

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