
É impossível encarar os desafios da vida moderna sem esbarrar em coisas ou gestos que nos irritam. Não importa se nosso time goleou o rival na última rodada do campeonato; se encontramos uma nota de cem reais no bolso do casaco que não usávamos desde o inverno passado ou se simplesmente fomos tomados pela aura do otimismo sem fim! Tudo isso não se sustenta diante de algumas manifestações que parecem criadas sob demanda para transformar o nosso humor.
Outro dia me vi diante de um dilema existencial: sucumbi ao vidro elétrico do meu carro, em pleno trânsito de segunda-feira às 7h30 da manhã. Me deu até saudade daquela manivela desengonçada que ativava o bíceps e o tríceps simultaneamente. Eu simplesmente fui incapaz de deixar uma pequena fresta acima da minha cabeça; afinal, se apertasse o botão, o vidro descia inteiro, se puxasse, ele subia até fechar. Não havia toque que desse jeito. Que tecnologia tosca! Tenho certeza de que os engenheiros responsáveis riam cruelmente durante a reunião para a gênese dessa aberração.
Ainda sobre coisas que irritam, usaria muitos parágrafos para o trânsito, o celular, o despertador, o despertador do celular… O smartphone e todas as maluquices do seu entorno são a materialização da irritação! Me irrita muito aquele fenômeno das reuniões, seja em bares, em casa, na rua, na chuva, na fazenda, quando todos lançam mão do seu aparelho para mostrar seus vídeos rápidos, memes e postagens favoritas. E o que dizer sobre grupos de WhatsApp? Quem gosta deve ter o mesmo cinismo dos criadores do vidro elétrico sem controle!
Mas pior que as coisas que irritam são os comportamentos que nos fazem perder a vontade de cantar uma bela canção. Você, raro leitor, já pegou uma fila para pagar o seu almoço e a pessoa do caixa usou uma calculadora para somar os trinta reais da refeição mais os cinco da bebida? Tudo bem, eu também sou de humanas, mas isso desafia a praticidade, não? E quando o frentista pergunta se vamos pagar no cartão e tentamos agilizar dizendo “sim, no débito”, totalmente em vão, porque ele volta com a máquina e não importa se foi apenas dois segundos depois, ele vai perguntar: “crédito ou débito”? Deve ser culpa das telas ou dos inúmeros estímulos aos quais somos expostos, “estamos emburrecendo”, como escreveu recentemente a Suzana Herculano-Houzel.
E se é para julgar o comportamento alheio, não vou poupar nada. Me irrita quem come em pé; me irrita quem fica escolhendo por horas a comida no self-service (quem está na minha frente, os que estão atrás podem demorar à vontade); me irrita gente que boceja solfejando (se for afinado, mais ainda). Todo tipo de sommelier me causa irritação! Aquele que avalia seu prato: “tá faltando um verdinho, hein!” Aquele que avalia sua bebida: “Sabia que Coca-Cola é mais cancerígena que whisky?” Garçon, vou trocar a coca por uma água com gás! “Sabia que o PH da água com gás altera a acidez do seu estômago”? “Sabia que o açúcar é pior que a cocaína”?
Me irrita quem me chama de doutor! Me irrita quem faz questão de ser chamado de doutor!
E aquela pessoa que sempre reage com “Ãhn” diante de uma pergunta? Experimenta não repetir e “verás” que ela entende tudo sempre. É mais um cínico que saiu da reunião do vidro elétrico! Tem também aquele que possui o rigor técnico de quem se leva a sério demais. Há algum tempo fui numa padaria chique e pedi um pão doce da vitrine. A moça perguntou se eu me referia ao brioche… Depois tentei dar uma de entendido e pedi duas carolinas; ela perguntou se o que eu queria eram os profiteroles. Levei tudo apontando sem repetir os nomes, não ia dar esse gostinho! Mas o universo me presenteou com a vingança, que veio a jato, pois o próximo da fila era um senhor que pediu algumas fatias de rosbife, nem muito finas, nem muito grossas. A cada naco do embutido que a “rigorzinho” cortava, ele avaliava com um olhar de trena e aprovava (ou não)! Que irritante!
No âmbito privado, não há nada pior do que aquele momento em que nos deparamos com a falta de reposição de algo que alguém usou até acabar. Do leite na geladeira à pasta de dente no banheiro. Do papel higiênico, aquele pacote de torradas que você só descobre que acabou quando puxa a embalagem até o fim.
Por fim, mas não menos importante, uma homenagem ao mestre Mario Prata (o pai), grande inspiração para esse texto. Assim como ele escreveu em sua crônica “Quer me irritar”, o campeão da minha irritação é o escanteio batido curto! Não há explicação tática que justifique esse impropério! Se algum “rigorzinho” do futebol apresentar uma estatística que comprove sua eficácia, vou mandar direto para a reunião do vidro elétrico! Xô, gente cínica!