Eu minto, tu mentes, ele mente

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Tudo começou com aquela mentirinha despretensiosa, a mentira moleque… Raiz. Sabe aquele dia em que acordamos sentindo um aperto no peito e decidimos não ir à escola? Para o bem da família e o contentamento da nossa mãe (que vivenciava a alegria funcional de cuidar do filho) não falamos que não fizemos o trabalho de geografia que valia nota, mas sim que estávamos com uma moleza no corpo e que certamente era febre.

Essa é a mesma época em que descobrimos (da pior maneira) que os adultos também mentem. Toda vez que íamos a alguma casa de amigos dos meus pais, as ordens eram: 1 – Não se meta na conversa dos adultos; 2 – Não mexa em nada nem aceite de cara o que te oferecerem; 3 – Jamais, em hipótese alguma, desminta seus pais na frente dos outros adultos!!! Essa era a diretriz fundamental, assim mesmo cheia de exclamações, porque era o principal motivo da famosa frase “em casa a gente conversa”. Não importava quem era o autor do delito, sobrava para todos.

Naquele tempo, não havia rede social. Repito, a mentira era raiz, ali, falada na lata. Não havia edição, nem filtro, muito menos textão em troca de curtidas… Quando uma mãe se gabava da inteligência do seu primogênito, que só tinha nota azul no boletim, a outra não ficava atrás, mandava logo que o seu “do meio” era o melhor da turma no judô. E era nessas horas que todas as regras eram quebradas, porque um de nós já mandava um “que judô, mãe?” Enquanto o outro estava com a mão enfiada no baleiro que era só de enfeite na sala. A mãe, tentando reestabelecer a ordem, pedia para devolver as balas, afinal já havia comido em casa, mas recebe outra quebra do estatuto: “eu não comi nada em casa antes de vir para cá”! E assim, as voltas eram sempre com um clima de “nunca mais levo vocês”! Outra mentira, claro.

Muitas vezes a verdade também é superestimada, como escreveu o mestre Luis Fernando Veríssimo no seu livro “As mentiras que os homens contam”.

As mentiras ajudaram a preservar a nossa espécie. Se não fossem elas, ainda estaríamos nas savanas esperando os leões comerem as carnes dos cervos, depois os chacais roerem os ossos para aí sim ficarmos com o que sobrou. Com a revolução cognitiva, aprendemos a cooperar, a trabalhar em equipe e a não mais respeitar aquela ordem, mesmo não sendo os bichos mais rápidos, muito menos os mais fortes entre os demais. Acho que em algum momento alguém incutiu essa ideia no bando, contando alguma lorota do tipo “Uga, uga… Basta querer que você consegue” ou “Uga, uga, é só mudar o seu mindset”!

O problema dos novos tempos nem é mais a mentira ou a “pós-verdade”. Hoje, mal sabemos distinguir a realidade da projeção porque aceitamos a mentira como meio, já não é mais uma finalidade. A mentirinha raiz deu lugar a uma dissimulação banal. Um dos motivos é porque somos tomados por ideias que afetam nossas convicções. A principal delas é a obrigação de transmitir uma imagem de sucesso!

Aí compramos a ilusão de que um projeto estético cumpre o papel de credibilidade que a sociedade espera dos seus melhores exemplares de cidadãos. Assim, somos definidos pelo carro, pela casa, pelos lugares que frequentamos. Enquanto nós, homenzinhos, projetamos nesse modelo nossa falta de potência, de afirmação e até de uma certa anatomia específica que é supervalorizada; as mulheres buscam validação, seja por serem vítimas da estrutura patriarcal ou também pelo simples desejo de potência. O fato é que todos nós estamos sempre em busca da parte que falta, como no livro do Shel Silverstein.

Até aí nada de novo. Como já falei, o grande problema é que estamos tratando a mentira como uma trivialidade. Fenômenos atuais como os famosos bebês reborn; o grupo de homenzinhos que paga uma bala para escalar montanhas e descobrir o “verdadeiro” homenzinho que há dentro de si ou a fixação que as pessoas nutrem pela vida (ou a separação) nada autêntica de outras pessoas que são admiráveis apenas por serem ricas; são exemplos de como estamos entorpecidos por uma realidade no mínimo editada.

Muitos se preocupam com o avanço da Inteligência Artificial, como se isso fosse tirar nossa privacidade ou colocar em risco nosso modelo de sucesso, mas há tempos os smartphones e redes sociais já fazem isso. O que está rolando agora com essa chuva de tecnologias capazes de criar e recriar cenários realistas é mais que uma previsão de um episódio de Black Mirror. As IAs só avançam porque aceitamos a mentira como realidade. O que fazemos nas redes sociais, editando fotos e vídeos para “parecermos” aquele modelo ideal, fomenta todas essas insanidades.

Daqui a pouco, não será mais necessário ter um carrão, uma casa com estética de laboratório ou ter que fazer viagens caras para render postagens que geram likes. As IAs farão tudo isso por nós, como se fosse verdade e teremos a mesma validação dos vídeos e fotos editados que postamos atualmente.

Quantas vezes você mente por dia? Muito? Pouco? Não importa, afinal as intenções são sempre as melhores, não é mesmo? Seja para proteger alguém, pela harmonia social, para ter uma noite agradável com os amigos ou somente pela dopamina de algumas curtidas.

No fim das contas, como diria aquela velha canção: “mentir para si mesmo é sempre a pior mentira”.

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