Masculinidade inócua

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Uma das primeiras lembranças que tenho de música vem de uma fita cassete que ouvíamos em loop infinito lá em casa. Era uma espécie de “as 7 melhores da Jovem Pan” da pré-história… Se num futuro distante, arqueólogos encontrassem esse artefato e ouvissem a nossa canção preferida da época, “Da-da-da” da banda Trio, provavelmente concluiriam que o nosso estilo de vida era muito primitivo. Escavando mais um pouco, encontrariam um disco que tinha uma capa com um cara de cabelo comprido, de duas cores, usando batom e blush, segurando duas guitarras como se fossem bebês e vestido com uma camiseta de ombreiras enormes. Quando escutassem a música título do álbum “Masculino e feminino”, primeiro acho que teriam dificuldade de ficar inertes e depois, talvez, mudassem de ideia sobre suas primeiras conclusões.

Eu era muito criança, não fazia ideia do que o Pepeu Gomes queria dizer, mas adorava o clima da guitarra com o timbre dos teclados, o leve descompasso da batida e claro, cantava aos berros: “salve, salve a alegriaaa”! Quando adulto (já um homenzinho), essa música entrou para a lista daquelas que dão vergonha de ouvir alto no carro com o vidro aberto.

Mas qual seria o descompasso neste caso?

É evidente que as maiores vítimas do patriarcado são do sexo feminino. A masculinidade tóxica é responsável pelo envenenamento de muitas mulheres, mas nem por isso devemos descartar o fato de que os homens, eventualmente, também possam experimentar do próprio veneno.

Ainda na infância, pouco depois de ficar “dançandinho” com o Pepeu, descobri uma inabilidade que me causaria muitos constrangimentos: eu era ruim de bola! Para um menino, isso talvez seja bem pior do que ouvir Lady Gaga no talo durante um congestionamento para um homenzinho… Tudo bem, não é Copa do Mundo de vergonha para definir qual é a melhor ou a pior, mas a questão é que não dominar a arte do futebol, principalmente numa infância em que jogar bola era como jogar Fortnite nos dias de hoje, dificultava muito a interação com a molecada.

Na época, a sociedade dos menininhos era dividida entre os “craques de bola”, sempre escolhidos e populares; os que “davam pro gasto”, geralmente eram os que enalteciam os craques e jogavam para eles; tinha também os “donos da bola”, que não eram craques nem jogavam para o gasto, mas tinham o poder aquisitivo para patrocinar a pelada; e finalmente vinha a minha turma: os “caneludos, perebas ou pés de rato”! Esses nunca eram escolhidos e, quando acontecia, era por pura falta de opção.

O patriarcado é tão estrutural que suas concepções são fortalecidas logo nas categorias de base, como dizem no futebol. Nessa mesma época, na minha primeira infância, meu esforço para fazer parte daquilo era hercúleo porque não queria sofrer com a misoginia. Era muito comum que os que não jogavam o jogo recebessem apelidos “carinhosos” associados a algo feminino. A feminilidade era motivo de vergonha e até desonra entre os futuros homenzinhos. Sendo assim, comecei a jogar de goleiro, pois na época poucos encaravam essa tarefa que não exigia muita habilidade com os pés. Com o tempo, desenvolvi certa técnica e algum reflexo que até me levaram a ser escolhido, mas sempre com uma ressalva. Diziam: “Andrey, pra catar no gol”!

O sentimento de pertencimento é adaptativo!

Na adolescência, conversar sobre as emoções era algo que ganhava um significado gradativo conforme a demanda; a ordem era “pegar sem se apegar”, mas no fundo todos sabiam onde o calo apertava. Mesmo assim, as piadinhas sobre os perigos que o sentimentalismo poderia causar eram constantes. Lembro de uma namorada por quem eu nutria muita admiração, mas que não havia passado pelo crivo dos meus parças. A pressão foi tanta que, mesmo contrariado, passei a agir como um babaca, ao ponto dela terminar comigo e eu estar destruído por dentro, mas fingindo naturalidade para o bando. Fui motivo de chacota por um bom tempo devido à derradeira D.R., testemunhada por um dos meus amiguitos.

Na vida adulta, percebo que não seguir o padrão da masculinidade que é fartamente acusada de ser tóxica ou ser um homem feminino (como diz a canção) ainda é uma cisão no modelo que se perpetua há muito tempo. Mas a conta nunca vai fechar se nós, homenzinhos, continuarmos buscando pertencimento sem crítica. Por outro lado, ainda há muitas mulheres sofrendo com o machismo, mas estimulando esse modelo que as vitimiza, como uma espécie de “Síndrome de Estocolmo”. A jornalista Mariliz Pereira Jorge escreveu de forma precisa sobre isso recentemente.

Felizmente, é possível ver mudanças; seja por “mea culpa” de alguns da minha geração para trás ou pelo movimento das novas gerações. Mas isso ainda ocasiona reações, vide os conteúdos redpill “pelaí”! Assim como no futebol da minha infância, os homenzinhos fazem de tudo para continuar ganhando no jogo. No fim das contas, para muitos, ainda é sobre ser ou não ser escolhido…

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