
Não é de hoje que ir ao cinema é uma grande aventura. Com alguma sorte, se não for aquele período em que todas as salas passam o mesmo filme, encontramos aquela sessão marota no meio da tarde, sem filas nem aventureiros na nossa frente escolhendo o que vão assistir como se fosse o cardápio do McDonald’s. Mas sorte é merecimento! E se não é novidade, tal experiência inclui preços abusivos, salas cheias de pessoas que não se incomodam em usar o celular e comentar o filme em voz alta a cada cena. É como ir à praia no feriado e não querer pegar trânsito. Não há do que reclamar!
E foi assim, com esse clima de quem paga caro pela experiência de tomar um café coado pelas artesãs felizes do Butão, que banquei uma ida ao cinema num sábado à noite. Ver filmes é um hábito do qual não abro mão, não importa a circunstância. Quando minha curiosidade é maior que a paciência de esperar pelos streamings ou pela exibição na TV, visto minha armadura e encaro um cineminha. Tirando todos os perrengues e considerações prévias supracitadas, dessa vez me deparei com algo que achei no mínimo inusitado.
O filme que escolhi tinha umas duas horas e tanto, achei ótimo, valeu a experiência; mas confesso que até a metade, o ritmo não foi o seu forte e, para a minha surpresa, percebi várias pessoas daquela sala lotada levantando-se e indo embora. Ah! Também teve um casal que levantou e voltou umas 984 vezes. Saíam e voltavam juntos, separados, em sequência; uma loucura! Deve ser algum tipo de parafilia… Não consigo conceber a ideia de alguém pagar mais de “cem pila” num passeio (incluindo estacionamento, baldão de pipoca e outros gastos) para simplesmente abandonar o rolê no meio.
Dizem que todo filme tem pelo menos 10 minutos de algo que pode servir de aprendizado. Atribuem essa frase erroneamente ao Godard, mas, independente da autoria, diante dos preços abusivos, acho que deveriam fazer um “disclaimer” antes das exibições: “Atenção, prezado espectador intolerante à frustração, aguarde sentado na sua poltrona até que identifique os dez minutos de lição deste filme!”.
E, antes que os raros leitores da geração Z me repreendam alegando que ninguém é obrigado a fazer o que não quer e nem ser exposto a gatilhos, venho por meio desta afirmar que concordo; em partes! Antes de chegarmos a esse propósito de zero frustração e alegria perpétua, aprendemos um pouco com algumas angústias… Sim, diretamente do tempo em que criança andava sem cinto de segurança no “chiqueirinho” da Belina do avô e todo aquele papo de tiozão cringe.
Quando eu tinha uns nove anos, meus irmãos chegaram em casa com a fita de um filme chamado “Uma dupla quase perfeita”. Era um daqueles campeões de exibição na Sessão da Tarde, em que um cachorro do barulho se metia em altas confusões. Tinha o Tom Hanks (pouco antes do Forrest Gump) e o cachorro em questão era um Mastim bochechudo que babava em tudo. Na época, tínhamos acabado de receber o Saldanha, um boxer grandão e desengonçado como o Hooch, nosso herói da história. A identificação foi imediata! Aquela hora e meia de filme estava muito agradável até que, no final, pulem essa parte “Enzos e Valentinas”, foi traumático! Me lembro de sentir uma sensação de impotência misturada com incredulidade…
Na minha mentalidade infantil, não era possível que alguém elaborasse um final daqueles. Minha mãe não passou pano, já me situou dizendo que aquilo acontecia mesmo, que eu aprendesse! Acho que ela já estava ligada na regrinha dos 10 minutos, sem fazer ideia de quem era o tal Godard, a não ser na letra de “Eduardo e Mônica”. Fiquei péssimo só porque minha expectativa não foi atendida. E não é que isso acontece até hoje!
O filósofo e escritor Byung-Chul Han, no seu aclamado livro “Sociedade do cansaço”, elabora que vivemos um período intitulado de sociedade do desempenho, onde tratamos todas as relações através de uma busca incessante por resultados. A pressão para sermos sempre “positivos” esgota a capacidade de lidar com a frustração e com a negatividade. Seria uma perda de tempo se submeter a experiências que não possuam “valor” mediante essa lógica. Com isso, nossa subjetividade é sequestrada pela ideia de que não fazer nada é perda de tempo, e pior, nosso tempo só é bem gerido se o gastarmos com atividades prazerosas. Daí a ostentação (inclusive do tempo bem gasto) como meio de existência!
Fico imaginando se a belíssima canção “Diariamente”, do Nando Reis, gravada magistralmente pela Marisa Monte, fosse composta hoje. Alguns versos poderiam facilmente ser atualizados: “Para passar o tédio, celular; Para lidar com a realidade, álcool; Para calores longos, ar-condicionado; Para o corpo desejado, o-zem-pic”.
Lidar com as próprias inadequações, suportar a própria companhia é um desafio! Qualquer coisa é melhor do que ficar sozinho. O conforto ilusório é uma fuga de nós mesmos. O mínimo esforço possível não pode ser desejado a qualquer custo! Extinguir o tédio não deveria ser uma meta. Já o verdadeiro conforto deveria ser um bem comum…
Talvez seja isso. A turma que largou o filme só estava entediada e “cinema não é lugar de tédio”! Será que o Jean-Luc Godard concordaria com essa afirmação?