
De todas as coisas que parecem importantes e fundamentais na vida adulta, uma das que mais me impressiona é a idolatria ao carro. Aprendi desde a infância que não cultuar este ícone da sociedade moderna é motivo de exclusão entre os meus. Lembro que “todos” os meninos que eu conhecia na época, se enchiam de orgulho por saber os nomes dos modelos e suas respectivas marcas, enquanto o meu sentimento de pertencimento era suprido quando conseguia lembrar de um com a letra “S”, quando jogávamos STOP (Adedanha no Rio e outras regiões).
Uma vez virei piada porque perguntei se o carro que havia passado na rua era conversível, pois parecia estar com a capota fechada. A resposta seguida de muitas risadas foi que “não existia carro clássico conversível”! Obviamente, eu não sabia o que era um carro clássico e muito menos que regra era essa tão evidente assim.
Com o tempo, fui entendendo que um automóvel carrega muitas simbologias e sentidos. No universo dos homenzinhos, ele representa mais que um bem, mais que um objeto de desejo; é quase um currículo… Uma espécie de perfil no LinkedIn.
Quer afetar a autoestima de alguém, diga que seu carro é feio! Aliás, isso é parte do tripé da masculinidade frágil: dirigir mal (pode ser substituído por não ter carro ou ter um carro ruim); torcer por um time que não está num bom momento e não transar bem. Para mim, são parâmetros tão subjetivos quanto à classificação de carros clássicos que não podem ser conversíveis, porém, raro leitor, experimente fazer uma afirmação dessas para algum homenzinho e veja nascer uma lista de justificativas ou mais um podcast com conteúdo redpill…
Como diz a bela canção da Zélia Duncan, estamos sempre atentos ao que menos importa. Enquanto nos ligamos na potência dos nossos carrões, no design arrojado (não sei o que isso quer dizer até hoje) ou no quanto eles valem na tabela FIPE, esquecemos de uma função primordial dessa máquina de fazer pessoas se sentirem melhores que as outras: sua capacidade de criar memórias.
Na época da graduação numa disciplina de estágio, lembro de um caso em que um adolescente não concordava com a venda do carro da mãe que havia falecido, mesmo não podendo dirigi-lo. A professora responsável pela minha orientação argumentou que naquela circunstância um carro não era apenas um carro, nele havia muitos significados, muitas memórias de conversas, de realizações e movimentos para além do objeto. Desde então, compreendi o valor que um espaço físico tem na memória afetiva.
Dentro de um carro, fazemos escolhas, decidimos trajetos, educamos e somos educados. É impossível não lembrar de momentos de viagens, músicas que viraram trilha sonora de paisagens, sem contar a percepção da passagem do tempo. Aqueles que viram seus filhos saírem do banco de trás, do bebê conforto até passarem para o banco da frente, entendem o que estou falando.
O cronista e escritor Antônio Prata escreveu uma crônica muito didática sobre uma memória criada sobre quatro rodas, quando tentou impressionar sua namorada com conhecimentos do seu carro que, digamos, não detinha. Foi um perrengue onde, como ele definiu, um homem enfrentou o perigo com os olhos fechados e a cabeça erguida.
Toda vez que passo por um carro de um modelo e cor que já tive, leio a placa para saber se é o próprio. Quando a checagem bate, geralmente sou tomado por uma pequena euforia seguida de um filme na minha mente. Primeiro lembro das situações alegres, das canções e lugares. Os perrengues ficam por último, deixando a saudade em segundo plano. Acho que é um jeito de me sentir bem por ter trocado de carro.
Meu primeiro carro foi o mais rico em histórias. Fiquei pouco mais de três anos com ele, mas foi tempo suficiente para submetê-lo aos meus erros de cálculo. Quem dirige sabe que, ao sair da autoescola, não temos ainda a destreza de saber exatamente os espaços que nossas máquinas cabem.
Uma vez, saindo de uma vídeo locadora (deem um Google Enzos e Valentinas) acompanhado da minha namorada, precisei manobrar o carro, pois havia pouco espaço para sair da vaga. Com a confiança de um homenzinho que se orgulha da liberdade de ir para onde quiser com a sua amada, engatei a ré e acelerei sem pestanejar. Fui tomado pela surpresa de um solavanco do meu lado, mas continuei firme nos meus movimentos. Ela me perguntou, levemente assustada com o barulho, o que havia acontecido. Respondi que devia ter passado por cima de alguma pedra ou algo do tipo… Poucos metros depois, precisei mudar de faixa e reparei que meu retrovisor não tinha mais espelho. Inclinei o pescoço para conferir se dava para entrar e continuei o trajeto; tranquilo e infalível como um Michael Schumacher. Eu jamais correria o risco de ser visto como mau motorista, não naquele momento.
Num outro dia, mas dessa vez sozinho, ainda com o primeiro carro e sem a destreza que a ocasião exigia, voltava apressado para ver o Corinthians na TV, era final de campeonato. No rádio, ouvia uma coletânea da Adriana Calcanhotto, depois que um caminhão passou no sentido contrário, me perdi na entrada de uma curva e saí da pista. Tudo muito rápido! Entre a freada e o solavanco foram segundos, não lembro de muitos detalhes. Mas a música que voltou a tocar depois que o carro parou era inesquecível; um cover da cantora gaúcha para um clássico do rei Roberto Carlos: “Por isso corro demais”.
Ironias à parte, desde então, entendi que a pressa não serve para bons motoristas… Aliás, para nenhum daqueles componentes do tripé que citei há alguns parágrafos.