
Era dezembro e eu estava no pré-primário, prestes a deixar a escola, pois lá não havia turmas de primeiro ano. Soube pela minha mãe que no ano seguinte iria estudar numa outra que tinha nome de uma pessoa e não de um reino encantado. Onde não chamaria mais as professoras de “tia”, mas sim pelo pronome “senhora”. Na minha cabeça de seis anos de idade, era um salto! Finalmente eu ia aprender a escrever de carreirinha, receber notas pelas atividades e não “estrelinhas com brilho”.
Mas antes dessa revolução tinha a formatura, evento que era uma mistura de festa de debutantes com baile da realeza, pois além da valsa também tinha a encenação de uma história em que todos os envolvidos se vestiam como os personagens dos contos de fada da Disney. Como tinha mais gente que personagens, tudo virava uma criança fantasiada: das árvores do bosque aos pássaros da floresta. No Jardim II, a encenação foi da Rapunzel e, como não era “formando”, fui fantasiado de zangão. Mas no ano seguinte fui promovido… Não tinha perfil para príncipe, então fui escalado para o papel de rei, pai da princesa Bela Adormecida. Tudo certo, reizinho nomeado, restava saber quem seria a rainha que, para minha surpresa, não seria nenhuma das minhas colegas de classe.
Numa terça-feira modorrenta, conheci a Rafaela! Uma garota dois anos mais velha que, assim como eu, recebeu papéis secundários nos anos anteriores e mesmo não estudando mais lá voltou para ter uma reparação histórica. Ela era linda! Alta, classuda, tinha gestos elegantes, não chorava por qualquer coisa e ainda fazia piada quando via outra criança fazendo pirraça. Era moderna, livre, sagaz, eloquente e resoluta! Definitivamente, aquele modelo disruptivo de menina, que, além de não brincar mais de boneca, já sabia escrever de carreirinha, era o meu par perfeito, minha Vada do filme “Meu primeiro amor”.
E foi nesse momento que meu, até então pequeno universo, centrado em birras para conseguir um brinquedo novo ou uma guloseima no fim de semana, se abriu completamente para a presença daquele ser especial. Eu seria capaz de abrir mão de qualquer brinquedo para presenteá-la ou ficar semanas sem comer doce de leite se ela me pedisse. Nossa relação se estreitou durante o período dos ensaios. Ela me contava coisas sobre sua turma do segundo ano, que os meninos eram muito infantis e eu, além de ridicularizá-los junto com ela, bancava o madurão para não me misturar à gentalha.
Foi então que chegou o grande dia! A encenação! Todos a postos, com seus trajes de gala e… Ação!
Era uma vez um reino encantado cujo rei tinha que dublar um áudio de um disco colorido, olhando para a rainha. Isso durava cerca de um minuto dos quinze da história toda. No resto do tempo, ele ficava admirando-a (há registros)! Ao final, vossa majestade sequer se despediu, pois acreditava que era apenas o primeiro dia do resto de sua vida com a sua rainha. Que dali em diante seriam “felizes para sempre”!
Nunca mais vi a Rafaela depois da formatura.
A psicanalista e escritora Ana Suy afirma no aclamado “A gente mira no amor e acerta na solidão” que a criança reina o seu próprio universo até que descobre que é apenas mais uma no mundo e que não terá tudo que deseja. Assim, “Sua majestade, o bebê” (termo cunhado pelo tio Freud), tem que aceitar a noção de falta…
Há alguns dias, estava lembrando dessa história e fiquei imaginando como a Rafaela estaria hoje. Será que casou? Será que no casamento tirou aquela foto cafona dentro do carro ou entrelaçando as taças? Será que achou seu príncipe encantado e segue vivendo na felicidade plena? Ou está exausta porque precisa cuidar de tudo enquanto seu príncipe (um adulto disfuncional que não colabora) sai para trabalhar? Será que teve filhos? Enzo, Valentina e Vicenzo ou Antônio, Laura e Pedro? Será que ela dirige seu carro nas viagens em família ou sucumbe ao papel de passageira porque seu príncipe quer exibir seus dotes de piloto em seu carrão? Será que se divorciou e encontrou finalmente a felicidade com outro príncipe ou outra princesa (por que não)? Será que está solteira e viaja para fazer trilhas perigosas pelo mundo? Será que banca seus desejos? Ou prefere cumprir o papel que a sociedade cobra? Será que gosta de sexo selvagem? Ou tem preguiça e nojinho dos fluidos corporais que tal prática ocasiona? Será que está no Tinder? Ashley Madison? Será que edita a vida nas redes sociais para ter validação? Será que fica conferindo quem viu e quem curtiu suas postagens? Será que ainda é moderna e disruptiva? Ou faz o que todo mundo faz para sentir pertencimento? Será que tem gosto duvidoso, tipo comer pão com recheio de pipoca, torcer para o São Paulo e espalhar “fake news” no grupo de WhatsApp das amigas do ensino médio? Ou gosta do Djavan, é corintiana e faz bom uso de um livro de história?
Acho que ainda penso nisso porque aquela centelha de Rafaela que vivenciei na primeira infância ainda norteia meu projeto “felizes para sempre”. Seria falta? Expectativa? Realidade? Não sei! Faço terapia e tento não fugir da angústia ocasionada pela falta, mas como diria o mestre Lenine em sua bela canção: “só é real o que convém à realeza”.