Sertão de Pai pra Filho
Quando soube que Breno Silveira estava preparando um filme cujos protagonistas seriam Luiz Gonzaga e Gonzaguinha, naturalmente me enchi de expectativas. Ao contrário de muitos, que creditam ao diretor de “2 Filhos de Francisco” um cinema de apelo dramático afim de atrair expectadores (como se isso fosse algo menor), gosto da sua filmografia e vejo méritos nos seus projetos.
Na semana de estreia de “Gonzaga de Pai pra Filho” levei minha mãe para conferir a saga do “Rei do Baião”, afinal ela é a grande responsável pela minha admiração à obra de Gonzaguinha. A casa onde eu morava com meus pais era povoada por uma extensa coleção de discos de vinil e fitas cassetes, a música sempre foi o termômetro do ambiente e cada integrante da família tinha uma peculiaridade em suas coleções. Da coleção de minha mãe passei algumas tardes ouvindo Emílio Santiago, João Bosco, Jorge Ben (ainda sem o “Jor”) e outros mestres da MPB. Numa dessas “aulas” lembro ter me atraído por um disco de capa dupla, com uma foto em mosaico, que só dava forma ao rosto do cantor barbudo se olhada de longe. Era uma coletânea do Gonzaguinha intitulada “Sangrando”, que reunia as músicas censuradas do cantor no período da Ditadura e outros grandes sucessos. Entre eles “Da Vida”, que cantava com o pai.
Gonzaguinha transbordava sentimento em suas canções. Um pouco mais crescido e com “a poeira da estrada” como ele gostava de dizer, percebi que sua vigorosa poesia retratava com a mesma maestria, a acidez das desilusões e a alegria de um encontro. O filme de Breno Silveira, apesar de focalizar a história do Luiz Gonzaga pai, confirma que a arte do filho foi forjada no sofrimento.
A trajetória do Rei do Baião é dessas que desafia o roteirista mais criativo, alia-se a um trabalho de caracterização monstruoso dos atores (principalmente Júlio Andrade e Adélio Lima) para dar vida àquela relação. Recheado de canções que certamente marcaram momentos de muitos expectadores (ao nosso lado um casal cantava e batucava a cada verso de Gonzagão), “Gonzaga de Pai pra Filho” é competente na sua proposta e, se clichê para muitos, entrega a emoção na medida da obra dos dois artistas. Com todo respeito à “Asa Branca”, “Assum Preto” e “Que nem Jiló”; “Sangrando” transcende a condição de música!
Assim como em “2 Filhos de Francisco” e “À Beira do Caminho” a relação afetiva do expectador com aquela atmosfera realça os contornos da trama. Muito além da brasilidade de Luiz Gonzaga, do seu pioneirismo e de sua genialidade artística, o que me tocou profundamente em sua história foi a bela personificação do sertanejo, puro e singelo, cuja aridez do sertão nordestino está na sua entranha, na aspereza de sua mão forte e na dureza de seu afeto; “rocha viva”, como diria Euclides da Cunha. Inexplicavelmente me senti parte daquele sertão sem nunca ter passado a menos de 1 km dele… Meus genes nordestinos foram reativados!
Cinema à Mostra
Na semana passada e pelo quarto ano seguido, fiz uma imersão no cinema mundial através da 36ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. Trata-se de um verdadeiro banquete para os cinéfilos, que têm ao seu dispor 350 filmes espalhados por salas em todo o canto da cidade. Compulsão para uns, diversão para outros e necessidade para alguns, o fato é que o evento ocasiona uma mobilização em torno da sétima arte durante esta quinzena. O público paulistano, já acostumado com uma programação eclética ao longo do ano, é engrossado por turistas do mundo inteiro, que geralmente, transformam as longas filas e imprevistos na programação em indicações, contraindicações e às vezes até debates… Na Mostra, as filas são grandes provedoras de relacionamentos.
Os anos em sequencia vão nos apresentando a algumas figuras marcantes. Em geral, o público que frequenta as salas durante o dia é composto de homens e mulheres da recém-chamada “melhor idade”; eles compram pacotes para “todas” as sessões e são os responsáveis pelos comentários mais passionais. Sempre antes ou depois das sessões é possível encontrá-los travando verdadeiros debates sobre “o novo filme do Kiarostami”, “a estética do Sokurov” ou “o neo-realismo sul americano”. Até aí tudo bem! O problema é quando os mais empolgados dissertam sobre a moral da história do filme turco ou o desfecho da trama do “film noir”. Também são muito organizados. Gostam de divulgar a exaustão o número de filmes que já viram e se revezam como guardiões da ordem e do silêncio nas salas, digo, nos santuários de projeção… Cheguei a ser advertido com um veemente “psiu” ao tentar me livrar da embalagem de uma barra de cereal. Ah! A alimentação de um maratonista de Mostra também é um caso a parte, a dieta balanceada é rica em coisas práticas que caibam na mochila. A partir do ano que vem terei de primar por embalagens que não emitam som.
Outros habitues das salas são os profissionais do audiovisual. É difícil agradá-los, são exigentes. Deles ouve-se: “Não se faz mais filmes de baixo orçamento em centros urbanos!”; “Este título é pretensioso, vamos ver se corresponde às expectativas”; “Este moleque promete!” (falando de um jovem cineasta em seu terceiro filme). E tem também os folclóricos… Aquele que é famoso porque é “cinéfilo famoso”; tem o que sai da sala quando o filme completa exatos 25 minutos e volta quando falta meia hora para o fim; tem o que ronca até em filme de tiroteio, mas ninguém supera o senhor que senta na primeira fileira e emite um “HÁ” seco quando a cena é engraçada e um “HÁ – HÁ – HÁ” (trissílabo e pausado) quando a cena é “muito” engraçada. Tinham me contado e eu achei que era lenda, até compartilhar uma sessão em que ficamos rindo da risada dele.
Figuras a parte, cada um tem sua particularidade na relação com os filmes. Como são muitos e diversos, é sempre uma boa oportunidade de entrar em contato com culturas e histórias que não estamos acostumados. Num dia, por exemplo, estive na Islândia no primeiro horário, depois fui até a Capadócia na Turquia, a seguir na Cidade do México e terminei a jornada em Tóquio. Como disse o saudoso poeta Wally Salomão: “Eu tenho os pés no chão, mas a cabeça eu gosto que avoe”.
Daqueles que vi, destaco os sul-americanos “Infância Clandestina”, “No” e “A Culpa do Cordeiro”. O alemão “O Peso da Culpa” e a estreia do Cronenberg filho, ao melhor estilo do pai, “Antiviral”. Do cinema nacional, gostei da animação “Uma história de Amor e Fúria”, do delicioso “Eu não faço a menor Ideia do que estou fazendo da minha vida” e o ótimo “Primeiro Dia de Um Ano Qualquer” do Domingos de Oliveira. A ótima notícia fica novamente pela exibição de filmes nas unidades do SESC no interior de São Paulo. Aqui no Vale do Paraíba poderemos conferir “A Bela que Dorme”, “Na Neblina” e “A Caça”, no SESC de São José dos Campos. Espero também encontrar outros amigos (folclóricos ou não) nesta outra parte da Mostra, afinal o cinema, como a arte em geral, é feito para aproximar as pessoas.
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