Gentileza é Fundamental
As recentes discussões sobre a fiscalização na cidade de São Paulo para preservar o direito do pedestre, expõe um problema crônico das cidades brasileiras: nossa educação no trânsito. Naturalmente associei a situação à uma música do Lenine.
Rua da Passagem (Trânsito), parceria de Lenine e Arnaldo Antunes, não me chamou a atenção na versão original do disco “Na Pressão” (1999). Talvez por não dirigir à época ou por não ter experimentado alguns dissabores em ambientes hostis. Precisei ouvir sua segunda leitura, no DVD Acústico MTV (2006) – http://youtu.be/A3WbWOBJxks – para ser arrebatado pela “embolada orquestrada” e letra afiada.
O grande mérito da canção é conseguir, sem chatices pedagógicas, apontar alguns conflitos utilizando o trânsito como referência. Existe lugar melhor para se por a prova, nossa paciência, capacidade de relevar, coerência e altruísmo?
Quando Lenine canta: “A cidade é tanto do mendigo quanto do policial”, consegue delimitar geograficamente o conteúdo do seu “puxão de orelha”. Muito além de qualquer escola filosófica (os marxistas que me perdoem) acredito que esta frase sintetiza o princípio básico para o cidadão exercer seus direitos e deveres.
Para os motoristas tomados pela soberba, talvez por se locomoverem com verdadeiros “tesouros” ambulantes, que tal o verso: “Não se deve atropelar cachorro nem qualquer outro animal, todo mundo tem direito a vida e todo mundo tem direito igual”?
E já num nível utópico, onde a prática e principalmente a concepção de “Gentileza” nos elevaria à condição ideal de civilização, nossos poetas costuram sua mensagem com: “Boa Noite! Tudo bem! Bom Dia! Gentileza é fundamental!”
A meu ver, o trânsito é a manifestação pública mais espontânea dos cidadãos exercendo seu direito de locomoção. Provavelmente, nem no Congresso para nossos “guias” ou na mais rebelde passeata para o sujeito comum, se consiga fazer tanta política como no trânsito. Ao mesmo tempo, é o local onde canalizamos todas as irritações pertinentes à vida urbana no momento em que estamos a caminho do melhor lugar.
Infelizmente nossa realidade está longe da ideal. Ainda se acredita em invulnerabilidade quando se bebe além da conta e quando se beneficia de uma Lei que diferencia pobres de ricos. Mas o que entendo como fundamental para a situação caótica do nosso trânsito é algo que ainda prevalece na identidade brasileira: a dificuldade de ser coerente no cotidiano. É inadmissível um sujeito “saudável” se revoltar contra políticos corruptos e achar normal utilizar uma vaga para deficientes porque é mais próxima do Caixa Eletrônico… O que esse sujeito faria se estivesse exposto a barganha que rola em Brasília?
Assim como na política, nosso trânsito é composto por cidadãos com seu bom senso à prova. Enquanto o discurso não for incorporado aos atos, nossa rua da passagem continuará sinuosa e com quilômetros de engarrafamento.